domingo, 21 de fevereiro de 2010

Crendices Entre os Caçadores do Sertão do Seridó


Curiosa e mansa, pousando para um close

Sariema (seriema) domesticada , criada solta, desde pintinho.

CRENDICES ENTRE OS CAÇADORES DO SERTÃO DO SERIDÓ
(Oswaldo Lamartine de Faria)

O sertanejo seridoense carrega, como os demais homens do campo, as suas superstições legadas dos nossos antepassados luso-afro-ameríndios.


No Dicionário do folclore brasileiro, Luís da Câmara Cascudo arrola maior número de superstições ligadas ao cachorro:

"Quando uiva, está chamando desgraça para seu dono. Ouvindo o uivo, diz-se: todo o agouro para teu couro! Ou emborca-se um sapato virando-se a palmilha para cima. O cão se calará. Cachorro cavando na porta de casa está cavando a sepultura do dono; se cavar areia com o focinho para rua vale o mesmo. Com o focinho voltado para casa, cavando para fora, é anúncio de dinheiro. Dormindo com a barriga para cima, mau agouro. Deitado, com as patas dianteiras cruzadas, bom agouro. Rodando sem destino pela casa, está afugentando o diabo. Dormindo e ganindo, está sonhando. Urinando na porta é prognóstico feliz. Quando está uivando é porque vê almas do outro mundo ou a morte aproximando-se. Os cães eram sacrificados a Hécate e avisavam de sua presença invisível uivando, assim como viam os deuses, os lêmures, as sombras dos mortos (Ovídio, Fastos, 1, 889; Horácio, Epodos, V). Para cachorro não crescer, pesa-se com sal. Para não fugir, enterra-se a ponta da cauda ou os escrotos debaixo do batente da porta, ou, sendo na fazenda de criar, no mourão da porteira. Não é bom erguer o cão pelas orelhas, para que não fique mofino (covarde). Para não ficar hidrófobo, deve ter nome de peixe. Quem mata um cão deve uma alma a São Lázaro. Puxando a cauda do cão toma-se ladrão. Para livrá-lo da tosse, põe-se-lhe ao pescoço um rosário feito com pedaços de sabugo de milho. Cachorro com orelha cortada na sexta-feira da Paixão fica imune de hidrofobia. Quem sofre de pesadelo deve fazer um cachorro dormir debaixo da cama. Para perder o faro, passa-se uma bolinha de sebo na ponta da cauda e dá-se-lhe a comer. Para readquirir o faro, esfrega-se-lhe no focinho sangue de tatu ou de veado..."

Dentre muitas anotadas e omitidas atrás, acrescente-se que o cachorro não deve comer carniça de animal (o matuto quando diz animal, refere-se a eqüinos, asininos e muares) sob pena de ser atacado do "mal da rabugem". Como medida curativa amputam-lhe as extremidades das orelhas.

Antônio Vicente, meão de idade, natural da Serra da Araruna (PB) e assassinado em derredor da década de 1950 para uns lados da Serra do Sincho (São Paulo do Potengi, RN) dizia de uma vacina infalível para imunizar os cachorros contra a moléstia (hidrofobia); consistia em uma beberagem de rapadura, sal e alho a ser ministrada na "força da lua", isto é, três dias antes e três dias depois da lua cheia ou nova.

Força da lua que faz cachorro mordido correr (ficar hidrófobo), os aluados endoidarem, as fêmeas prenhes darem cria e os mordidos de cobra sofrerem terrível dor de cabeça. É de se imaginar que a selenotaxia no mundo sertanejo tem material sobejo para um estudo que já está tardando.

A caipora (curupira dos índios) não é "estória de Trancoso" para a maior parte daquela gente. Ela é a mãe do mato. Ruiva, assexuada, escanchada em um porco do mato e cachimbando — faz a vez do único código de caça que existe e se conhece naqueles mundos:

Vestida só com os cabelos
é a roupa que lhe convém
............
E os tais cabelos curtos
no corpo da caipora
é como espinho de cardeiro
a ponta aparece fora

Na noite de sexta-feira, evitam andar no mato. É o receio da caipora que os persegue com um assobio fino-de-fazer-medo e açoita-lhes os cães:

Tem noite que a caipora
quer ir brincar influída
corre adiante dos cachorros,
onde quer, fica escondida
os cães pegam a uivar
a caçada está perdida

No outro dia o cachorro
amanhece todo inchado
e fica vazando sangue
o cabelo arrepiado
e não pode mais comer,
morre o cachorro afamado

A meizinha usada para livrar o cachorro da caipora é a esfregadela de alho pelo corpo. Para o bicho-homem, há outra:

Mas a caipora é muito
intrigada com pimenta
caçador que come molho
a caipora se afugenta

O caçador que tomar
amizade à caipora
tem que lhe dar muito fumo
e ver ela toda a hora
mas descobrindo o segredo
ela dá-lhe e vai embora...

A caipora às vezes vem disfarçada em outro bicho. Um sertanejo, há muito, confidenciou-me haver disparado e recarregado a capricho sua lazarina por quatro vezes em um gavião vermelho: "Olhe que não dava quinze braças pra onde eu estava agachado. No primeiro tiro o bicho se arrepiou e sujou (defecou) — pensei inté que ia cair. Depois dos quatro, já desconfiado, rebolei uma pedra e vim m’imbora..." Outro contou-nos haver atirado em um veado e esse, impassivelmente, vir farejar o pé de pau onde estava trepado. Astúcias da caipora.


(Faria, Oswaldo Lamartine de. A caça dos sertões do Seridó. Rio de Janeiro, Serviço de Informação Agrícola, 1961. Documentário da Vida Rural, 16, p.52-53)