Sempre tive uma grande paixão por esse esporte genuinamente nordestino, que, em um passado remoto, correspondia à extensão do cotidiano do nosso vaqueiro. As demonstrações de valentia e de coragem eram coroadas, na maioria das vezes, exclusivamente pelo prazer de ter seus dotes reconhecidos.
Presentes nos paitos1, em situação de igualdade, estavam cavalo, boi e vaqueiro. Também, em situação de igualdade, estavam o vaqueiro autêntico e o vaqueiro da cidade. A interação, as brincadeiras, as demonstrações de habilidade, combinados com a imprevisibilidade decorrente de animais treinados para a lida, mas não para o esporte profissional; e de vaqueiros acostumados a realizar proezas no seu dia-a-dia, como parte do seu ofício, não como exclusivo meio de vida, davam um encanto especial ao esporte.
A boiada corrida2, irregular, composta por bois e novilhas de portes variados – predominantemente graúda - e características pouco homogêneas; os cavalos acostumados a correr no mato, não em uma pista com espaço delimitado; competiam com os mais afeitos àquelas condições, que montavam animais mais qualificados. Mas a graça do evento eram as cenas inusitadas e exclusivas proporcionadas a cada decida do boi: cavalo cabeando3 ou se acuando4 ao adentrar na arena; boi driblando vaqueiro de ponta a ponta do paito ou partindo na frente em disparada, aplicando-lhe o famoso e humilhante cambão5; vaqueiro derrubando boi distante do alvo (faixa); cavalo empinando6 no mourão7 ou tomando as rédeas8 e desembestando9 na corrida; eram os temperos da festa.
O vaqueiro estava sempre diante do imprevisível: a reação do seu cavalo; o tipo de boi que pegaria; e a sua pouca habilidade em conduzir o animal naquelas condições. Mas aí residia o encanto de tudo. Aí se encontrava o prazer de frequentar ou simplesmente assistir a uma vaquejada.
Apesar de atualmente dificilmente correr, continuo a gostar de vaquejada. Mas, cá pra nós: que a evolução do esporte o transformou numa covarde monotonia, com certeza transformou. Principalmente nas grandes vaquejadas, nos eventos de alto nível, olhar uma carreira na fase de classificação é o suficiente para ver todas. Cavalos impressionantemente avantajados, muito bem tratados e treinados; vaqueiros que não fazem outra coisa na vida a não ser treinar a semana toda, munidos de luvas que são verdadeiras navalhas; e, por último, uma boiada toda igual, não corrida, que se não cair, rendendo10 qualquer coisinha, na maioria das vezes terá a calda do seu rabo amputada, com precisão cirúrgica.
O pior de tudo é que aquele que emprestou seu nome ao esporte, aquele do qual o esporte se origina a partir da sua rotina diária, o vaqueiro original, não só perdeu o espaço, como também perdeu o nome que cedeu ao esporte. Se entrar na pista com um cavalinho pé-duro11, menos vistoso ou se for dos que gostam de já sair pegado na calda da rês ou se não souber desfilar com a pose que os “vaqueiros” modernos criaram como padrão, são rotulados pejorativamente de jacus12 ou de mandioqueiros12.
A ostentação e as mostras da forte saúde financeira dos que hoje praticam o esporte é algo impressionante, saindo, muitas vezes, do campo da extrema vaidade e entrando na esfera da humilhação aos que não foram tão bem favorecidos financeiramente pelo destino. Só exemplificando, já achava um excesso a escovação dos animais entre uma carreira e outra. Então, outro dia, vi, em uma grande vaquejada, um zelador de cavalos tendo que escovar os testículos de um animal no corredor do retorno, sem que o “vaqueiro” sequer parasse o animal para facilitar o “trabalho” do pobre infeliz, em frente a uma arquibancada lotada. Acho que para tudo há um limite, inclusive para a vaidade.
Excessos a parte, ainda bem que a essência e o charme da vaquejada do passado ainda tem espaço nos palcos menos vistos. Nos bolões13 e nas mini vaquejadas promovidas nos sítios, ainda é possível ver um cavalo que não seja Quarto-de-Milha14 com papel15, correndo. Também é possível ver, descendo na boiada irregular, o vaqueiro. Não precisa dizer que a cada apresentação, a deparação com o imprevisível e que em cada carreira, uma bem explícita e aparente diferença da outra.
(1) Paito - Palavra derivada de "pátio", mas com um sentido próprio e completo. Representa a arena onde se pratica a vaquejada O mesmo que "pista de vaquejada", local destinado a prática do esporte. As outras definições mais usuais "parque" e "pista" necessitam de ser compostas com o substantivo "vaquejada" para dar sentido exato a expressão.
(2) Boiada corrida - Gado que já tem experiência de pista e procurará se defender, dificultando o trabalho do vaqueiro.
(3) Cabear - Abanar o rabo. Agitar a cauda insistentemente, às vezes girando compassadamente como um ventilador.
(4) Acuar-se - “Armar o circo”. Desobedecer o ginete, fazendo de tudo para não correr.
(5) Cambão - Quando o boi dispara na frente e não permite que o vaqueiro sequer pegue na sua calda.
(6) Empinar - Erguer as patas dianteiras, apoiando-se apenas nas traseiras.
(7) Mourão - Tronco de madeira onde a porteira é firmada e representa o local onde o vaqueiro aguarda a saída do boi, no momento que antecede a carreira.
(8) Tomar as rédeas - Quando o cavalo resolve agir por conta própria, não atendendo aos comandos do vaqueiro.
(9) Desembestar - Sair em disparada desenfreada.
(10) Render - Demorar a cair, segurando-se em pé.
(11) Pé-duro - Animal adaptado a região, aclimatado, derivado das primeiras mestiçagem de raças trazidas para a região. Normalmente são animais rústicos, vigorosos, de porte mediano, cascos fortes e que, ao contrário dos Quartos-de-Milha são perfeitos para a lida diária do semi-árido.
(12) Mandioqueiro ou Jacu – Rótulo descriminatório aos que praticam o esporte, sem a mesma técnica dos profissionais. Até pela origem da palavras se percebe que não são modos de tratamento oriundos da nossa região (Seridó), pois o Jacu não é uma ave nossa e a mandioca só é cultivada em pequenas faixas de terra mais úmidas e férteis.
(13) Bolão – Pequena vaquejada sem premiação predefinida, onde os prêmios pagos aos vencedores são atribuídos a partir de um percentual das senhas vendidas.
(14) Quarto-de-Milha – Raça de cavalos originária dos EUA. Animal de grande porte e extremamente musculoso, especializado em corridas curtas (um quarto de uma milha), que tem se mostrado ideal para a prática da vaquejada profissional.
(15) Com papel – O mesmo que "com registro". Animal de raça, com pedigree.
Excelente texto sobre este esporte apaixonante.
ResponderExcluirMuito bom passar por aqui.Parabéns!
Boa semana!
Célia
A vaquejada de hoje ( as grandes ), é uma forma de alguns monstrar seu valor financeiro / poder, atráves de seu enorme caminhões e valiosos cavalos, ou seja se torno um esporte muito caro.
ResponderExcluirAbraço.
Ielton